quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Devo ir ou não? A pergunta do milhão!






Depois de mais de dois anos fora do projeto de voluntariado, invariavelmente ainda sou perguntada sobre diferentes coisas. Seja de como é viver nos EUA, se eu tive doenças em Moçambique ou simplesmente quanto custa todo o projeto. São das perguntas mais simples as mais complexas. Às vezes tenho medo de responder as complexas. Ir para um projeto de voluntariado é uma escolha única. Não posso dizer que será maravilhoso, pois estaria mentindo. Não posso dizer que não há riscos, pois estaria jogando poeira para debaixo do tapete, nem tão pouco posso dizer se eu faria de novo, pois sinceramente, tem coisas que nem nós mesmos podemos responder.
Mas posso dizer uma coisa: tudo que eu vi e vivi foi único. Ri, dancei, aprendi, conversei, respirei, chorei, esperneei, quis me matar, quis matar algumas pessoas, passei fome, frio e sede de água potável. Andei por 6 horas na escada do ônibus dividindo com mais umas quatro pessoas. Enfim. Como posso dizer que foi tudo maravilhoso, e como também eu posso dizer que tudo foi ruim?

Mas, como não lembrar das sextas que saíamos atrás do mé do dia? Naquelas ruas de areia de praia, era a poesia da semana: preparávamos cuidadosamente a bicicleta. Botávamos as 20 garrafas de Manicas que depois se tornaram 2M e por fim a danada da Laurentina (uma heineken para a região) dentro de uma mala. Amarrávamos cuidadosamente para não cair. Quando as bicicletas estavam boas, íamos em dupla para lá. Quando uma estava quebrada, íamos guiando a bicicleta. O caminho era único e vocês podem apreciar abaixo. Era o momento de felicidade. A folga merecida de sábado e domingo. Ver o pôr do sol era o momento êxtase daquelas sextas.

Como não amar um caminho como esse?

- Magumi.
- Vou bem, e você?
- Muzunga, estou a pedir 1 metical.[1]
(eu) - E eu estou a pedir 2 meticais.

Algumas crianças fugiam de nós. Éramos as brancas monstras que as crianças temiam. Os mais velhos empurravam os mais novos para cima de nós. Na lógica, até entendo, põe o mais fraco na frente e se o monstro atacar, o mais velho terá tempo de fugir. J

As mamás invariavelmente conversavam com a gente no caminho. Cumprimentavam. Já os homens achavam que todas as brancas seriam suas escravas sexuais. Bem, não é tão forte assim. Mas achavam que com um papinho torto iríamos ceder aos apelos sexuais deles. Não importava se eram casados ou não. Acho que fazer sexo com muzungo deveria ser o mesmo que fazer sexo com a Gisele Bundchen. Não haveria mulher que seria contra. (os devaneios mentais dos homens comuns...). E essa era nossa sexta atrás da nossa querida cerva gelada para acalmar os ânimos de um lugar que era mais fácil comprar cerveja que um pé de alface.
O nosso best. O tio da venda das cervejas, da margarina Amanda no saquinho, de algo parecido com sardinha, do macarrão, do extrato de tomate, do biscoito que era quase pedra... aaaaahhhh, deixa o mercado pão de açúcar no chinelo.
Confesso que utilizei o recurso das cervejas para contar meus dias naquele país. Sim, eu sou humana. Sim eu queria de volta a vida na sociedade. Sim eu queria poder cozinhar a comida que eu desejasse, queria assistir TV, queria não ser uma pessoa famosa. Ou seja, queria minha privacidade de volta. Era bem assim. Tudo que fazíamos rodava a cidade. Acho que não existe nada mais rápido que o boca-a-boca. Mas também pudera, de toda a população só haviam 4 brancos (2 brasileiras, 1 dinamarquês e uma americana). Éramos os diferentes. Então, eu nem ligava muito para as histórias. Só me importava de fazer as coisas certas. Não queria deixar uma imagem ruim para eles. Como eu acho que lá um dos maiores problemas é o alcoolismo, não bebia na cidade em que eu morava nas ruas. Não aceitava nada. Ia, comprava o mé e ia ser feliz em casa. Música quase alta, uma linda varanda pra aproveitar. Aaaaaaaaaahhhh a vida como era boa naquele lugar!

Um excelente dia. Camarão e peixe com cerva! :)  Quase terminando nossos dias ai. 


Mas então. Continuam me perguntando. E o que eu posso dizer, é que “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Não posso medir as coisas boas comparando com as coisas ruins. Não. Eu não acho que a ONG em que eu trabalhei era uma ONG correta. Sim, eu sou sincera, pois não devo nada a ninguém. Mas o que eu sempre friso é que o problema não é a ONG. São as pessoas. Sim, da mesma forma que vemos corrupção em todos os locais, as pessoas também se corrompem por meio de ONGs. Normal¿ Não. Aceitável¿ Muito menos. Mas eu pergunto: imagina se parássemos de viver e fazer as nossas coisas cada vez que nos deparássemos com corrupção, má fé, inveja e seja lá o que for. Isso para mim é desculpas barata. É mais fácil apontar a ONG como problema do que efetivamente demonstrar que não consegue viver nos termos que eles querem. Pessoas não são fáceis de conviver. Muito menos estrangeiros. Outras culturas são difíceis de ser entendidas. Da mesma forma que muitos reclamam que não respeitamos horários, eu reclamo que eles querem mandar em nós como se fossemos seus meros escravos latinos estúpidos. Era esse meu sentimento para resumir tudo. Mas sinceramente, eu ria de tudo. Chorava às vezes. Cantava para espantar os males. E seguia em frente. Fiz o que eu pude. Acho que muito menos do que eu deveria ter feito. Mas fiz.

Antes de desistir, podem vir conversar comigo. Antes de ir, também. Confesso que eu sei quem deve ou não ir para lá. Se for pra viajar e ver a vida passar, tenham certeza que serei mal educada. Não utilizem ONGs pra fazer passeios turísticos. É mais barato e menos penoso ir diretamente para o país. E até para isso eu posso ajudar.

E neste momento, 1:50 da madrugada de quarta para sexta, saibam que eu agradeço a cada um voluntário brasileiro ao redor do mundo. Vocês estão aprendendo e ajudando em algo. Seja somente com um simples sorriso para uma mãe desesperada, o trabalho pode ser esse. Obrigada de todo o coração. Animo com cada um que quer fazer algo bom para o próximo. Até mesmo na própria rua.
Queridos, obrigada por tudo. Posso resumir que a minha experiência foi mais de aprendizado que tudo. E deixo um trecho de Mia Couto no livro Terra sonâmbula.
“(...)afinal, em meio da vida sempre se faz a inexistente conta: temos mais ontens ou mais amanhãs? o que eu desejava era que o tempo se adiasse, parado como o barco naufragado.”



[1] Metical é a moeda corrente em Moçambique

domingo, 20 de janeiro de 2013

Música. O ar necessário.


Estou aqui, tentando concentrar para de vez conseguir escrever a espinha dorsal da monografia quando ao fundo inicia música sertaneja. E de tantos passos que eu dei, de ir para três continentes diferentes, sempre me deparei o quanto a música brasileira transpõe fronteiras que vão além da bossa nova, com “hits” tocados nas Starbucks e elevadores.

De uma forma diferente, o sertanejo invade momentos únicos. Na Europa via jovens bêbados cantando com um certo quê do breguismo nosso de cada dia. Aquele que sempre tem uma história de amor mal resolvida. De um amor ainda não curado ou de um amor novo encontrado. E isso foi em todos os países que estive. Ou seja, o sertanejo invadiu a Europa, bem como a América do Sul. Mas nada, nada se compara com o sertanejo tocado em Moçambique.

Eu era a menina de sorriso fácil nas ruelas de terra não batida. Meu sorriso e minha caneca de café, que os moradores fizeram a mamá[1] me perguntar o que eu bebia em minha caneca (deviam achar que era algo alcoólico, dado que sorrir sem motivos não é algo normal) eram coisas estranhas. E com esse sorriso, fui levando os dias. Até o dia que no caminho da sala dos professores, duas ruas depois da casa em que vivi, escutei um “pensa em mim, chore por mim, liga para mim, não não liga para eleeeee”. Apressei o passo.
Devia ser sete da manhã e os alunos estavam terminando o matinal deles. Uma menina cantava enquanto caminhavam e eu, como não poderia deixar de ser diferente, ao chegar próximo, juntei ao coro com ela. Leandra e Leonarda. Bem assim. Aqueles momentos em que não devemos nada. A vergonha e os entraves e os contratos sociais[2] que nos impedem de fazer isso, lá eu estava despida. E juntamos e cantamos. Como sempre, os alunos ficaram rindo da minha cara. Nada de anormal.

A música sertaneja, bem como Roberto Carlos é o que eles mais gostam de músicas estrangeiras nas áreas rurais. E eles escutam tudo. KLB era o hit do momento (sim, Macuse era um retorno ao passado). Na época o que tocava de sertanejo era Victor e Léo aqui no Brasil. Por lá ainda não tinha chegado o cheiro do sertanejo atual. E isso era sinônimo de viver nos pensamentos do passado. Nas músicas que embalaram invariavelmente minha infância e minha adolescência. Meu mp3 não era lá muito curtido pela minha amiga de projeto (confesso que eu a traumatizei, era só axé. Tisc tisc tisc... vivia meu momento pós micareteira).  Então o que ficou de melhor foi de música brasileira, a música sertaneja tocada no “clube”[3] bem em frente de casa.

Como antigamente no nordeste achavam que quem morasse no RJ, via todo dia os atores e atrizes globais, por lá era comum sermos perguntados se conhecíamos algum cantor. Fora as perguntas se eu era amiga do Ronaldinho. Coisas engraçadas. Coisas do cotidiano. Mas nada era mais incomum ver jovens escutando e amando as músicas do Roberto Carlos. E eles me perguntavam se eu gostava, era uma árdua tarefa tentar explicar que no Brasil RC era algo para gente acima dos 50 anos. E chega a ser irônico o RC agora retornar com uma música chiclete nas rádios brasileiras.

Mas, para uma muzunga[4] nada era mais cativante que a música local. A dança local deles. O quanto eles mexem o quadril de forma única. Tentei aprender. Minha amiga tinha muita vergonha de mim. Imagina uma pessoa acima do peso tentando dançar como eles? Pena que meu HD queimou. Tinha um vídeo meu dançando. Foi quando eu percebi o quão engraçada eram as minhas tentativas frustradas de ser dançarina. Mas nada disso impede da minha vontade de tentar dançar como eles. Ainda tento.

Bem, acho que essa semana vou deixar um vídeo da música que eu gostava por lá. Para mim essa música foi bastante importante. Principalmente nas áreas rurais, onde ainda as mulheres se sentem na obrigação de se casar cedo, ter filhos cedo e renegar a elas uma vida livre e com escolhas. Se casar é male[5].  A frase mais repetida na música. De uma forma trôpega, denuncia que o velho formato de casamento já não é mais aceito. Da mulher em casa, cuidando dos filhos enquanto os homens saem a beber já não é algo aceito pelas mulheres. A mulher se igualando e fazendo o mesmo. Não acho que igualar as coisas ruins dos homens seja melhor, porém no plano maior, são mulheres que irão começar a contestar seus maridos, falando que vão fazer igual à mulher da música. E, meus nobres, eu antes era distante do movimento feminista. Hoje eu carrego essa bandeira pacífica. A forma de tratamento dado a mulheres naquele país beira ao incomum. Estupros, violência familiar, doenças trazida pelos maridos, fome. E a lei mesmo que forte, a própria policia, políticos e ricos a ignoram. É uma das coisas que vemos na África. Fazem o que os ocidentais pedem em cartilha. Mas é ignorado em todas as instâncias do país. Ou vocês acham que o engravatado do Banco Mundial vai passar alguns meses na realidade de um moçambicano para ver se a lei realmente é além de um punhado de letras em um papel?

Mas, curtam o som do Valdemiro José na música Tá se mal.






[1]  Mamá= Mãe. Em Moçambique todas as mães são chamadas assim. Um carinho que os homens e os mais novos tem com as mães do país.
[2] Ainda explico o que eu chamo de contrato social. Podem ter certeza que não é nada filosófico. J
[3] Em algum post futuro eu falo como era esse tal clube. Bem, só para ter um pouco de noção, acho que o clube do filme For All - O Trampolim da Vitória vinha na minha memória sempre que entrava lá.

[4] Muzungo são todos os brancos. Mas muita das vezes eles chamam estrangeiros também de muzungos. Por isso não é pq a pessoa é negra que será igual a eles. A palavra muzungo para mim é algo forte e breve posto o porquê.
[5] Male quer dizer mal. Forma deles de falar o português.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Depois de dois anos silenciosos...





       Olá a todos!

                     Bem, agradeço imensamente a todos que apareceram por aqui mesmo depois de mais de dois anos de silêncio. De mãos caladas e amarradas. Posso comentar muitos motivos para isso, mas o principal é que Moçambique é uma experiência única. Ela é tão intensa que as vezes não conseguimos sair do mundo ao qual entramos e retornar a realidade ao qual convivemos diariamente.

                   Soube que ao escrever a palavra-chave "macuse", meus textos são os primeiros na busca do google. Não fico feliz por isso, fico triste, pois ainda não há inclusão nem social, nem inclusão digital e seja lá qualquer inclusão que você pense ainda na bela Macuse. Mas muito além disso, ainda há um silêncio daqueles que realmente constroem o país. Aqueles que as Ongs não estão preocupadas, a ONU finge que atingiu em algum dos seus números ou o Banco Mundial maquia em algum resultado. As 81% da população que vivem da agricultura, onde compõe somente 32% do PIB. Ou seja, para resumir esse economês chulo básico: Quase toda a população vive da agricultura mas isso significa que é somente 1/3 da riqueza gerada pelo país. O bolo é dividido em 3 e uma parte dele vai para 81% das pessoas! Uau!

                Bem, essas pessoas boa parte é inalcançável. Nunca viu um branco na vida. Sim, nunca viu um branco! E eu não sou branca. Eles não tem televisão para saber que existe uma cor além daquela que estão próximas a eles. Eu lembro uma vez uma senhora me tocando e incrédula, olhava para mim. Eu era um monstro? Eu era o quê para ela? Eu era uma pessoa? Ela não sabia identificar o que eu era. Para uma pessoa que tinha passado quase um ano nos EUA, que era mexicana, indiana e no final brasileira, era algo surreal. Gente, desculpas. Os dois anos de silêncio foram dois anos analisando tudo que eu vivi. Costumo dizer que é um outro mundo. Não melhor e nem pior ao nosso. Um outro mundo somente. É uma esperança que é possível mudar as coisas, mas também uma desesperança na humanidade. De ver negros batendo em seus empregados também negros! Sim, eu vi isso e calada de medo, nunca pude me levantar contra. Como disse uma colega: "seu melhor amigo nesse país é sua passagem de volta para os EUA". No momento eu não entendi, mas ao longo dos seis meses que pareceram 10 anos, entendi direitinho o recado.
   
              Silêncio. Esse silêncio ao qual não existe no mundo em que vivemos. Um silêncio que grita tanto dentro de nós que nos cala indefinidamente. Que nos deixam marcas, lembranças... memórias que não se apagam. E não há nenhuma vontade que seja apagada. Afinal, como no nosso mundo, nem tudo é tão ruim que não haja aprendizado e nem tudo é tão bom que não possa ser resgatado em outros momentos. E entender isso foram duros passos de dois anos e alguns meses.

              Mas o silêncio não faz bem. Afinal, que belo país eu vivi. Pessoas felizes pelas ruas mesmo vivendo com menos de U$ 1,00 por dia! E por aqui eu vejo pessoas tristes se matando para entrar em uma barcas e ganham o mesmo que 30 famílias. São pessoas que ganham R$ 2,000,00 na bela Rio de Janeiro. Sim, com esse mesmo dois mil reais em Macuse 30 famílias dividem e até mais!


            Bem, retomando o blog, tentarei escrever mais. Falar sobre dicas de viagem, ong, política e um pouco do que estou trabalhando atualmente: saúde em um viés político. Agradeço a todos que em algum momento enviou email ou mensagens para mim agradecendo o blog e as postagens. Em um momento cheguei a receber ligações até da Inglaterra! Boa parte são pessoas que nunca vi na vida! Isso é único. Não vou escrever muito pois as pessoas reclamam que sou prolixa demais. Melhor escrever textos curtos.

 Até!