terça-feira, 23 de março de 2010

Uma lembranca


A vida na escola dos EUA nao eh uma perda de tempo conforme eu pensava. O contato com outros voluntarios, sejam eles inspirados ou nao e o debate inspira a continuar algo que pode somente ficar na lembranca.
Hoje estavamos vendo CNN Heroes.
1st- Eu odeio CNN. Todos sabem o quao tendencialista essa emissora eh.
2nd- Eu detesto essa cultura, que nao esta ligada a uma limite geografica, de uma eterna busca de herois.
Mas objetivamente esse programa trata de pessoas ao redor do mundo que fazem algo de bom para melhora-lo. No episodio que assistimos, numa parte dele fala de um casal que vive no Congo e a ONG deles trata de reparar e conseguir novas ambulancias para areas rurais. So quem viveu numa area rural consegue entender o peso que essa acao tem. Consegue entender o pq eu sai de la chorando ao relembrar meus 6 meses em Mozambique.

Informacao? By Leonardo Picarelli

Todos pensam que ver uma crianca suja, sem roupa, uma senhora de 70 anos sem sapatos, a pobreza urbana, a ausencia de diversidade de comida, que tudo isso eh a pior coisa do mundo. Eh a pior experiencia. Mas nao foi. Hoje eu relembrei uma manha que tive em Macuse. Talvez foi a coisa mais dolorosa que eu vivenciei na Africa.

Estava eu e Elis matabichando (tomando café no nosso belo “brasileiro”) quando escuto uma cancao. Uma voz de uma senhora e um coro acompanhando. Estavam cantando em chuabo, lingua local. Para mim soava como uma cancao triste e bonita. Os mocambicanos adoram cancoes tristes. Olhei pela minha varanda e na frente, com uma senhora a ampara-la enxerguei a cantor principal. Era um cortejo. Olhei para outra direcao e vi uma “tabua” que poderia ser algo como maca e um pano amarelado por cima. Valdez, um local que trabalha na casa dos DIs chegou na varanda. Antes de perguntar ele ja explicou: “e uma cancao de choro. A mae esta a cantar que sua filha morreu.”. Foi um choque. Malaria. Na Africa e muito comum maes enterrarem filhos. No meu mundo nao. A cancao era o choro. Tradicao local. Eles iam atravessar o rio num pequeno bote ou digamos barco, para enterrar aquela jovem que para nos, no mundo real, e so mais uma para as estatisticas, isso se as estatisticas chegarem ate Macuse.

Duas vezes fui ao hospital. Duas vezes fui fazer o teste da malaria. Duas vezes eu usei toda a minha influencia de “branca” para poder sair dali o quanto antes. O hospital esta sendo ampliado mas enquanto eu estava la aquele lugar era pior do que tinha visto em filmes. Era real. Paredes escritas com frases de odio ao colonizador. Tristeza. Na segunda vez que la estive vi a Elis com um olhar desaprovador por querer ser atendida o quanto antes para sair dali. A doenca nos torna mesquinhos e individualistas. Medo. Medo de sair dali com alguma doenca. Queria fugir. No Brasil ja tinha fugido uma vez do hospital. Ali era facil fugir, mas o medo da malaria me fazia permanecer.
Entrei quase na frente. Fui atendida. Fiz o teste, fui embora. Tentei explicar para Elis o inexplicavel. Eu trabalhava com a educacao, nao com a saude. Hoje relembro aquela mae cantando o seu choro. Anunciando a morte da sua filha. Relembro alguns doentes que vi sendo carregados em cima de uma Madeira como se fosse maca. Lembor aquele leito unico de hospital com um cheiro desagradavel, 3 pessoas internadas, sujeira, do branco passou a amarelo e das roupas dos tecnicos pingos de sangues eternos (em toda a regiao de Namacurra, que inclui Macuse, sao mais de 200 mil habitantes e somente ha um medico). Se sobreviveram foi puramente sorte. Lembro de uma crianca brincando com seringa usada.

Fui mesquinha, individualista. Vendo dezenas de maes no hospital com os seus filhos, mesmo nao estando na mesma fila de atendimento, nao conseguiria esperar para ser atendida.

Uma cama do hospital. by Leonardo Picarelli

Vejo voluntaries com um espirito de ordem na desrodem, mas quando a realidade se depara e olha nos nossos olhos as coisas mudam. Quando a mais simples doenca se apresenta e o medo que assola a nos. meros mortais conhecedores das desgracas humanas via tv e internet. Desesperamos.

Chorei ao relembrar. Chorei ao escrever. Quando estamos inseridos nessa realidade nos acostumamos, mas quando voltamos ao mundo desenvolvido nos desesperamos.

O hospital de Macuse esta sendo ampliado e reformado. Espero que la consigam aparelhos que realmente diagnostiquem a malaria, doenca que mata mais que qualquer outra em Macuse. Espero que os leitos sejam pelo menos algo digno.

Desculpem nao postar a continuidade dos meus ultimos posts, essa lembranca falou mais alto hoje, que tive como curso da manha falando sobre a Africa. Nao me lembro se ja comentei esse fato aqui no blog. Os Caminhos para Mocambique nao sao feitos so de praia e agua quente.

Esse post foi escrito na quarta-feira passada. Ontem conversei com um provavel voluntario que trabalha como palhaco nos hospitais. Um trabalho maravilhoso. Senti mal por ter tido essa attitude na Africa. Nao sou perfeita, sou ser humano.

Paz,
Bia Vilela

Um comentário:

F.Mendes disse...

Cabeca!!!
A essa altura, voce ja sabe que a experiencia pode ou nao valer a pena, so depende de nos.
Com certeza, nossas experiencias foram muito marcantes e nos ainda nos emocionamos ao relembrar e ao ver cenas semelhantes. Passo por isso o tempo todo. O jeito, e continuar por essa estrada, se quisermos que as coisas melhorem, mesmo que pouco. beijao.