Depois de mais de dois
anos fora do projeto de voluntariado, invariavelmente ainda sou perguntada
sobre diferentes coisas. Seja de como é viver nos EUA, se eu tive doenças em
Moçambique ou simplesmente quanto custa todo o projeto. São das perguntas mais
simples as mais complexas. Às vezes tenho medo de responder as complexas. Ir
para um projeto de voluntariado é uma escolha única. Não posso dizer que será
maravilhoso, pois estaria mentindo. Não posso dizer que não há riscos, pois
estaria jogando poeira para debaixo do tapete, nem tão pouco posso dizer se eu
faria de novo, pois sinceramente, tem coisas que nem nós mesmos podemos
responder.
Mas posso dizer uma
coisa: tudo que eu vi e vivi foi único. Ri, dancei, aprendi, conversei,
respirei, chorei, esperneei, quis me matar, quis matar algumas pessoas, passei
fome, frio e sede de água potável. Andei por 6 horas na escada do ônibus
dividindo com mais umas quatro pessoas. Enfim. Como posso dizer que foi tudo
maravilhoso, e como também eu posso dizer que tudo foi ruim?
Mas, como não lembrar das
sextas que saíamos atrás do mé do dia? Naquelas ruas de areia de praia, era a
poesia da semana: preparávamos cuidadosamente a bicicleta. Botávamos as 20
garrafas de Manicas que depois se tornaram 2M e por fim a danada da Laurentina
(uma heineken para a região) dentro de uma mala. Amarrávamos cuidadosamente
para não cair. Quando as bicicletas estavam boas, íamos em dupla para lá.
Quando uma estava quebrada, íamos guiando a bicicleta. O caminho era único e
vocês podem apreciar abaixo. Era o momento de felicidade. A folga merecida de
sábado e domingo. Ver o pôr do sol era o momento êxtase daquelas sextas.
Como não amar um caminho como esse? |
- Magumi.
- Vou bem, e você?
- Muzunga, estou a pedir
1 metical.[1]
(eu) - E eu estou a pedir 2 meticais.
Algumas crianças fugiam de nós. Éramos as brancas monstras
que as crianças temiam. Os mais velhos empurravam os mais novos para cima de
nós. Na lógica, até entendo, põe o mais fraco na frente e se o monstro atacar,
o mais velho terá tempo de fugir. J
As mamás invariavelmente conversavam com a gente no caminho.
Cumprimentavam. Já os homens achavam que todas as brancas seriam suas escravas
sexuais. Bem, não é tão forte assim. Mas achavam que com um papinho torto
iríamos ceder aos apelos sexuais deles. Não importava se eram casados ou não.
Acho que fazer sexo com muzungo deveria ser o mesmo que fazer sexo com a Gisele
Bundchen. Não haveria mulher que seria contra. (os devaneios mentais dos homens
comuns...). E essa era nossa sexta atrás da nossa querida cerva gelada para acalmar
os ânimos de um lugar que era mais fácil comprar cerveja que um pé de alface.
Confesso que utilizei o recurso das cervejas para contar
meus dias naquele país. Sim, eu sou humana. Sim eu queria de volta a vida na
sociedade. Sim eu queria poder cozinhar a comida que eu desejasse, queria
assistir TV, queria não ser uma pessoa famosa. Ou seja, queria minha
privacidade de volta. Era bem assim. Tudo que fazíamos rodava a cidade. Acho
que não existe nada mais rápido que o boca-a-boca. Mas também pudera, de toda a
população só haviam 4 brancos (2 brasileiras, 1 dinamarquês e uma americana).
Éramos os diferentes. Então, eu nem ligava muito para as histórias. Só me
importava de fazer as coisas certas. Não queria deixar uma imagem ruim para
eles. Como eu acho que lá um dos maiores problemas é o alcoolismo, não bebia na
cidade em que eu morava nas ruas. Não aceitava nada. Ia, comprava o mé e ia ser
feliz em casa. Música quase alta, uma linda varanda pra aproveitar.
Aaaaaaaaaahhhh a vida como era boa naquele lugar!
Um excelente dia. Camarão e peixe com cerva! :) Quase terminando nossos dias ai. |
Mas então. Continuam me perguntando. E o que eu posso dizer,
é que “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Não posso medir as coisas
boas comparando com as coisas ruins. Não. Eu não acho que a ONG em que eu
trabalhei era uma ONG correta. Sim, eu sou sincera, pois não devo nada a ninguém.
Mas o que eu sempre friso é que o problema não é a ONG. São as pessoas. Sim, da
mesma forma que vemos corrupção em todos os locais, as pessoas também se corrompem
por meio de ONGs. Normal¿ Não. Aceitável¿ Muito menos. Mas eu pergunto: imagina
se parássemos de viver e fazer as nossas coisas cada vez que nos deparássemos
com corrupção, má fé, inveja e seja lá o que for. Isso para mim é desculpas barata.
É mais fácil apontar a ONG como problema do que efetivamente demonstrar que não
consegue viver nos termos que eles querem. Pessoas não são fáceis de conviver.
Muito menos estrangeiros. Outras culturas são difíceis de ser entendidas. Da
mesma forma que muitos reclamam que não respeitamos horários, eu reclamo que
eles querem mandar em nós como se fossemos seus meros escravos latinos
estúpidos. Era esse meu sentimento para resumir tudo. Mas sinceramente, eu ria
de tudo. Chorava às vezes. Cantava para espantar os males. E seguia em frente.
Fiz o que eu pude. Acho que muito menos do que eu deveria ter feito. Mas fiz.
Antes de desistir, podem vir conversar comigo. Antes de ir,
também. Confesso que eu sei quem deve ou não ir para lá. Se for pra viajar e
ver a vida passar, tenham certeza que serei mal educada. Não utilizem ONGs pra
fazer passeios turísticos. É mais barato e menos penoso ir diretamente para o
país. E até para isso eu posso ajudar.
E neste momento, 1:50 da madrugada de quarta para sexta,
saibam que eu agradeço a cada um voluntário brasileiro ao redor do mundo. Vocês
estão aprendendo e ajudando em algo. Seja somente com um simples sorriso para
uma mãe desesperada, o trabalho pode ser esse. Obrigada de todo o coração.
Animo com cada um que quer fazer algo bom para o próximo. Até mesmo na própria
rua.
Queridos, obrigada por tudo. Posso resumir que a minha
experiência foi mais de aprendizado que tudo. E deixo um trecho de Mia Couto no
livro Terra sonâmbula.
“(...)afinal, em meio da vida sempre se faz a inexistente conta: temos
mais ontens ou mais amanhãs? o que eu desejava era que o tempo se adiasse,
parado como o barco naufragado.”
2 comentários:
Todos os dias as lembranças voltam. Elas marcaram. Não vai sair. É igual mancha de amora que não sai nem com sabão em pó multi-ação. Está lá. E dá saudade...
Muito legal sua atitude, Bia! As pessoas deveriam pensar como você antes de partir para uma aventura dessas. Percebo que a grande maioria está mais interessada em se aproveitar da situação de viajar do que com o próximo.. até mesmo em casos de ajuda voluntário no Brasil ocorre isso. Pessoas totalmente egoístas, despreparadas, achando que sabem o que é melhor para outras pessoas.
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